O exame da evolução da dívida pública brasileira desde os tempos coloniais até os dias atuais nos permite concluir que o endividamento jamais esteve a serviço do desenvolvimento do país e da garantia de direitos sociais da população, através de investimentos em políticas públicas essenciais. As duas únicas exceções foram num curto período do governo Vargas, após o Golpe de 30, com uma auditoria que proporcionou uma economia no serviço da dívida e permitiu investimentos na indústria de base e no período da ditadura civil militar, durante o chamado “milagre brasileiro”, onde o endividamento externo financiou o projeto de desenvolvimento dos militares, alavancando o PIB brasileiro.
Entretanto, em ambas as situações este crescimento da economia não significou distribuição de renda com melhorias salariais e serviços públicos adequados para a população. Foi uma ferramenta que estimulou a concentração de riqueza e renda nas mãos de poucos. O endividamento beneficiou uma elite empresarial num primeiro momento e desde a década de 90, com o enfoque neoliberal da “financeirização” da dívida e o seu crescimento de forma exponencial, carreou enormes privilégios para o sistema financeiro nacional e internacional.
A dinâmica de crescimento da dívida pública após a década de 90 atendeu a dois condicionamentos: um de natureza interna e outro de ordem externa. O condicionamento interno é representado pelo ritmo de crescimento da dívida, resultado das mais altas taxas de juros do mundo e pela emissão de novas dívidas para pagar dívidas antigas. O condicionamento externo está ligado à imposição da adoção das políticas econômicas neoliberais e seus ajustes ortodoxos de políticas fiscais e monetárias, de acordo com o corolário sugerido pelo FMI e Banco Mundial, visando reduzir déficits orçamentários, mesmo à custa de redução dos investimentos em áreas sociais. Isso é um fator de interferência e ataque a soberania nacional.
Foram questões decisivas que fizeram com que a administração do sistema da dívida pública sempre privilegiasse os interesses dos credores que constantemente se viram no direito de impor suas posições frente a um Estado fragilizado financeira e institucionalmente. As análises das execuções orçamentárias nestes períodos, prorrogados até os dias atuais, mostram que o pagamento de juros e amortizações, além da rolagem da dívida, comprometeram em média de 40% a 47% do Orçamento Geral da União. Por outro lado, foi possível ser observado as baixas destinações orçamentárias para as mais diversas áreas sociais, com percentuais que giravam de inacreditáveis 0,01%, como no caso da habitação, a 4% na área da saúde. São montantes que não atendem as demandas sempre crescentes de serviços públicos para atendimento à população, que se vê diante de um quadro dramático e que tende ao agravamento no futuro.
Vivemos um enorme paradoxo sob o ponto de vista econômico. O Brasil é um país rico, hoje, é a 9° economia do mundo, já fomos a 6º durante boa parte do 1º governo Lula, mas a pontualidade no pagamento da dívida pública provoca enorme atraso e descaso com a dívida social. Este modelo econômico tem um caráter concentrador de renda e torna o país um dos mais desiguais do planeta. É quase inacreditável aceitar, dada a grandeza dos números, que FHC “entregou” uma dívida interna para Lula da ordem de 654 bilhões de reais e após 14 anos de governo do PT, do próprio Lula e sua sucessora Dilma Rousseff, a dívida tenha alcançado uma de magnitude de 3,8 trilhões de reais. Com Temer, os 4 anos de Bolsonaro e este primeiro ano do Lula 3, a dívida já supera a casa dos 5 trilhões de reais, apesar dos escorchantes pagamentos de juros e amortizações realizados durante todo este período.
Para continuar alimentando o sistema da dívida pública, o governo através de escolhas políticas, o BC “independente” é uma delas, em sintonia com a elite financeira nacional e internacional, presente nos altos escalões da República através de seus representantes, sacrifica o povo com uma pesada carga tributária, operando um modelo regressivo que taxa o consumo com enorme voracidade e poupa de uma tributação mais justa e equitativa o grande capital e o patrimônio. A recente reforma tributária simplificou a tributação, mas não mexeu em questões centrais. As forças conservadoras presentes no Congresso sempre vetam um modelo mais justo e redistributivo as camadas populares.
Outro marco importante do endividamento brasileiro é o privilégio tributário dispensado ao sistema financeiro, principais credores da dívida pública, com as reduções de alíquotas de impostos, taxas e contribuições, sendo a isenção de imposto de renda na compra de títulos da dívida interna, o mais escandaloso deles. O comprometimento da arrecadação com os juros e amortizações da dívida impede o retorno adequado de bens, investimentos e serviços públicos, além de rifar o patrimônio público com privatizações e concessões sem transparência.
O tema da dívida não é debatido em nível nacional da forma que deveria, tendo em vista a sua importância e a forma que afeta a vida do cidadão brasileiro. Isso tem um caráter proposital para esconder da população os valores estratosféricos desta transferência de recursos públicos para o grande capital nacional e transnacional. Quando o tema é tratado na mídia nacional, o mesmo é discutido numa linguagem excessivamente técnica, que dificulta a compreensão da grande maioria do povo brasileiro, com a presença de economistas de viés neoliberal, representantes diretos ou indiretos do próprio sistema financeiro, o grande beneficiário do endividamento brasileiro.
Vozes que tem uma visão mais crítica e dissonante, que debatem o tema sobre o prisma da negação dos direitos sociais, face aos enormes encargos financeiros da dívida, tem extrema dificuldade de atingir a grande mídia, ficando relegados a segmentos específicos da sociedade civil organizada. Por este conjunto de razões que se faz necessário cumprir o preceito constitucional que prevê uma auditoria integral no sistema da dívida do país para dar transparência e conhecimento à população destes volumosos recursos que estão sendo pagos a título de serviço da dívida pública.
Claudio Leitão é economista e professor de história.