Paulo Cotias
Há um ano (precisamente em 8 de janeiro de 2023), a tentativa de golpe à democracia foi, talvez, a evidência mais concreta e definitiva das pretensões neofascistas para o Brasil. A ideia de ruptura institucional tinha precedentes na história política do país. Portanto, não era algo implausível e com um legado nefasto, deixando algumas linhas-mestras para a sua realização. Não deu certo, mas foi por pouco, muito pouco. Isso significa que estamos livres das ameaças neofascistas? De modo algum.
Como seu congênere do século passado, o neofascismo almeja o poder e sempre o poder. Por isso, esse ano eleitoral torna-se estratégico para o processo de retomada do projeto de poder total. Ou seja, aos que se antepõem ao neofascismo, 2024 deveria ser um ano de cavar trincheiras bem fornidas, pois as disputas pelo terreno político e ideológico será feito palmo a palmo. Formar prefeitos e vereadores transcende as relações meramente locais. É o primeiro passo para a consolidação do apoio a deputados, senadores e para candidatos a governador e presidente. Desconsiderarmos isso é ingenuidade ou cínica conivência. Sem falar que a história já nos ensinou o bastante sobre o quanto a inocência ou mesmo a ignorância deliberada flertam com a dissimulação, apontando os riscos e consequências disso.
Não esperemos que o grande espectro neofascista se mostre apenas com as mesmas cores e intensidade de outrora. Também não esperemos que tenha se convertido ao credo humanista, civilizacional e democrático. Assim, percorrendo a curvatura provável desse arco, teremos ao menos três possibilidades comportamentais para o próximo pleito. Isso é possível pela natureza caleidoscópica do neofascismo brasileiro. Vejamos.
A vertente extremista se fará presente nas formas tradicionais e bem conhecidas. Se estiverem em alguma posição de poder (como nos casos de reeleição ou participação em algum dos três poderes), serão avessos a composições e mais aferrados a pautas do núcleo duro do neofascismo, como as que reafirmam solidamente todas as formas de rompimento da alteridade, as que fazem apologia à violência direta, as que reduzem as desigualdades sociais ao dogma meritocrático e as que cristalizam e normatizam o domínio patriarcal, patrimonial e supremacista. Usarão mais abertamente as estratégias tradicionais do neofascismo (pelos mais modernos meios de propagação) como a manipulação, desinformação, assassinato de reputações, negacionismo, incitação agressiva e construção delirante sobre o real.
Teremos uma vertente mediana, pela qual os neofascistas usarão alguns dos elementos do extremismo para manter um pé nas bases mais sólidas e, com isso, sustentar a identidade política, mas colocando o outro pé no mundo real das relações democráticas convencionais, dos problemas reais da sociedade, com maior elasticidade na composição de alianças pragmáticas e esquivando-se dos expedientes mais agressivos a fim de ocupar com maior capilaridade os espaços políticos e socioculturais.
Por fim, teremos os neofascistas dissimulados. Para chegar ao poder, vão enterrar mais fundo suas raízes, filiações e berço político ideológico para o público, mostrando-as discretamente apenas por necessidade ou provocação. Se estiverem em alguma posição de poder, se mostrarão preferencialmente apenas como realizadores, esquivando-se de posicionamentos e intervenções políticas e usarão tudo isso para cooptar o maior número possível de aliados, lançando mão do empreguismo, da possibilidade dele (os que aderem aceitando ficar na “lista de espera”) e da capacidade de aninhar e dar sobrevida com maior facilidade e elasticidade a outras forças eleitorais que se interessam apenas pela presença no poder para sobreviver. Uma vez tornando-se novamente hegemônicos, rompem a crisálida e deixam fluir a mais pura essência extremista, reunificando novamente o espectro neofascista. Esse é o jogo.
Paulo Cotias é Professor, historiador, psicanalista e escritor.