Otto Lara Resende
Mais uma vez Machado de Assis no vestibular. Dois capítulos de Dom Casmurro, na prova de Português aí em São Paulo. Ao menos assim Machado vai sendo conhecido, ou imposto, entre a meninada. Se entendi bem as questões propostas e as resoluções que saíram no “Fovest 92”, a prova não apenas opta pela versão do ciúme, como nela insiste de maneira tão enfática que nem admite sombra de controvérsia.
A hipótese aí encampada, de que Capitu não traiu Bentinho, um Bentinho paranoicamente ciumento qual Otelo, está fundamentada em O enigma de Capitu. Apareceu de fato no ensaio de interpretação de Eugênio Gomes, publicado em 1967. Muitas vozes discordaram da hipótese gratuita e absurda, que terá sido levantada como simples quebra-cabeça, um joguinho enigmático pra descansar o espírito numa hora de folga e tédio.
Quem fica tiririca, e com toda razão, com essa história mal contada, e tão mal contada que desmente o próprio Machado, é o Dalton Trevisan, machadiano de mão cheia e olho agudíssimo. Pois nessa prova do vestibular, o drama do Bentinho se apresenta como “centrado no ciúme doentio e na suposta traição de sua esposa”. Suposta? De onde os senhores professores tiraram este despropósito e o passam aos imberbes e indefesos vestibulandos? Dom Casmurro saiu em 1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses oito anos jamais ousou negar o adultério de Capitu.
Leiam a carta do Graça Aranha, amigo pessoal do Machado: “Casada, teve por amante o maior amigo do marido”. Voltem ao artigo do Medeiros e Albuquerque. Dar o Bentinho como “o nosso Otelo” é pura fantasia. Bestialógico mesmo. Um disparate indigno de pisar no vestíbulo da universidade. Refinadíssimo escritor, mestre do subentendido, virtuose da meia palavra, do understatement, Machado jamais desabaria numa grosseira cena de alcova, como num flagrante policial de adultério.
Mas, se querem, o flagrante está no capítulo 113, Embargos de terceiros. No anterior capítulo 106, Dez libras esterlinas, Capitu revela os escondidos encontros com Escobar. Bentinho era estéril – precisa prova maior? De onde então essa ideia pateta de um Bentinho ingênuo e ciumento? Não é uma simples suspeita que está no capítulo 99, O filho é a cara do pai. D. Glória, avó amantíssima, rejeita o neto putativo. Está na cara que nenhuma razão justifica virar o romance e o Machado pelo avesso. Ensinar errado é pecado capital. Ouçam o Dalton. Quem insistir na tese do “enigma” não lhe dirija a palavra. E de lambugem não me cumprimente. Machado merece respeito!
Otto Lara Resende – 1922/1992.