Todos os dias, ao primeiro sol da manhã, mãe e filha sentavam-se na soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mãe, começava esta a catar-lhe piolhos.
Os dedos ágeis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro azulado do couro. E na alternância ritmada de suas pontas macias, procuravam os minúsculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de cafuné.
Com o rosto metido no escuro pano da saia da mãe, vertidos os cabelos sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente da manhã lhe entrefechava os olhos.
Foi talvez devido à modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manhã – a não ser, talvez, uma leve pontada – quando a mãe, devassando gulosa o secreto reduto da nuca, segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio negro e lustroso em gesto de vitória, extraiu-lhe o primeiro pensamento.
Exibido como um misto de cafuné e cuidado, o trabalho minucioso da mãe em catar piolhos na cabeleira da filha é trazido nesse conto curto. Escrito por Marina Colasanti, o texto foi publicado no livro Contos de amor rasgado, de 1986.
É interessante como a escritora ítalo-brasileira mostra de maneira poética uma situação corriqueira na maternidade. A narrativa é feita na terceira pessoa e de maneira descritiva, revelando com detalhes um momento íntimo entre mãe e filha. A situação tão comum tem o potencial de fazer com que muitas leitoras e leitores se identifiquem.
Aqui também há um contraste, no qual a atividade, aparentemente desagradável de extrair piolhos, é também um momento de ternura. A menina se entrega aos cuidados da mãe enquanto reflete sobre a vida e tem um instante de clareza de pensamentos.
Marina Colasanti