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É SOBRE SOBREVIVER

Luiz Edison Vidal

Hoje é uma quarta-feira qualquer de outubro de 2023. Enquanto preparo minha aula de produção de texto para os meus alunos do 7º e do 8ºanos, pergunto-me por que não tento escrever uma crônica para dar um bom exemplo. No momento em que penso por onde começar – ou se devo começar, afinal, sequer preparei a aula e essa é para amanhã, no primeiro horário, e já passa de 23 horas – imagino a meia dúzia de alunos que se sentam no fundo da sala, a turma quase sempre problemática: “Prófi, por que não escreve você uma crônica pra ‘nóis’ ‘vê’ como ‘faiz’”.  Com essa turma é preciso ter bons argumentos, embora eles não o tenham. “Que tal trinta pontos na prova?”, pergunto.  “Já passei direto, tio, não preciso mais de nota”, diz o Kayke. “Mas o Dênis está sem média”, falo. “Já reprovei “mermo”, alerta. “Eu só preciso de 20 pontos. Se eu der dois chutes certos, e sempre acerto, passo de ano na tua matéria”, emenda Louis. “Mas pode errar os chutes, jovem”, respondo.  “Aí o Conselho de Classe me aprova.” Ele tem razão, aprova mesmo.

 Lógico, o melhor que tenho a fazer é construir uma crônica e apresentar-lhes. Sim, eu sei que pouco adiantará se não houver boa vontade deles para que construam o próprio texto. Também não quero qualquer crônica. Gostaria que eles narrassem o próprio quotidiano, que deve ser riquíssimo por todos os ângulos: moradores de comunidade, a maioria, devem ter histórias tão belas quanto tristes, tão cheias de aventuras, nada entediantes.  Devem nos provocar tanto o riso quanto o choro. Esse é o meu desejo como professor, provocá-los, fazê-los escrever, fazê-los ler; e que a escrita e a leitura, ou qualquer outra manifestação artística, contribua para a formação deles, que os tornem seres humanos melhores, mais dignos, respeitados.

Agora, o sono me aperta.  Também não posso chegar com uma aula mal preparada, o que seria certamente um desastre. Volto os meus olhos para os diversos livros que dispus sobre a escrivaninha e começo a folheá-los. Um dos meus gatos, o Alemão, está a roncar exatamente sobre aquele que   mais me interessa.  Pego o bichano carinhosamente, para não acordá-lo, e o coloco num dos sofás. Volto para o livro, mas logo o gato salta sobre o meu colo. Quer carinho, ou quer me dizer algo. Olho para a sua cara marcada por cicatrizes de uma severa, e talvez longa, esporotricose (dá para notar as falhas na pelagem) e, assim tal qual o matemático grego Arquimedes, grito “EUREKA”. Não, não saí despido pelas ruas do bairro.

O Alemão, o meu gato, assim como a maioria dos meus alunos de comunidades, é um sobrevivente. E agora virou fonte de inspiração.  O encontrei numa noite gelada de inverno, com o vento leste cortando a carne, embaixo de uma carcaça de um carro abandonada na Rua Alemanha, em Cabo Frio. Daí a origem do nome. O seu corpo estava todo tomado por feridas, alguma sangrava. Havia malacas até nas patas e nos testículos. Ainda não era castrado. A cauda quebrada. Ficou hospitalizado e sobreviveu talvez com a sua última vida e muita competência da doutora Tainá, dedicada e incansável veterinária.

É isso. Acho quase impossível que os meus alunos que sobrevivem, apesar do abandono estatal, não tenham uma boa história para contar. Pode ser em poucas linhas e não precisam perder o sono, como eu.

  • Professor e Escritor.
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