Sentado na primeira fila só tinha na frente um velho mapa com o Rio Amazonas e seus afluentes. Com uma régua de madeira Suelly Trindade, professora e proprietária do curso de admissão ao ginásio falava sobre a importância da bacia amazônica, enquanto eu pensava nos puxa-puxa, pirulitos de açúcar queimado, que guloso achava uma delícia. Dona Suelly não deixou por menos:
– Luiz Antônio, vamos lá, rios a margem esquerda do Amazonas.
– Quais? Não to vendo nada!
Eu só enxergava fora de foco e Dona Suelly, mulher de pouca paciência, pediu logo os rios da margem direita. Ora, nem à esquerda, nem à direita, a miopia que eu ignorava me impedia de ver qualquer coisa em um mapa velho e fora de moda. O resultado foi uma reguada no braço e um pito com acusação de deboche.
Cheguei em casa, com aquela cara de poucos amigos e o vermelhão no braço. Foi um escândalo! Calma! Não pela reguada, mas pelo desrespeito com a professora, inclusive, amiga da família. Só recebi a compaixão quando consegui contar a história e percebi a apreensão de minha mãe, que me pediu pra contar de novo, de novo e mais uma vez.
Explico. Minha mãe havia perdido a visão e o próprio olho esquerdo quando menina. Usava um olho de vidro depois de tentar transplante mal sucedido, com famoso oftalmologista, no Rio de Janeiro. A história sobre a perda do olho era um tabu familiar. Minha mãe e nenhum dos tios e tias falavam no assunto. Nem do meu pai consegui arrancar qualquer versão. Mas, tanto eu como meu irmão mais velho éramos reféns dessa história tida como uma tragédia familiar. Depois de muitos anos pude entender e tentar rir um pouco do susto e movimentação em torno da minha falta de percepção dos rios amazônicos.
Fui então levado ao Rio para consulta com o velho médico Nelson Moura Brasil, o do colírio, que atendia minha mãe. Após um exame minucioso decretou:
– Verinha, o garoto só tem miopia. Mais nada!
Minha mãe e a tia que nos acompanhava (há sempre uma tia e um tio em uma família de 11 irmãos) secaram os olhos com discrição e partimos com a receita nas mãos em busca dos óculos e da bacia fluvial perdida.
Final da década de 50 as óticas eram poucas e os modelos de armação dos óculos eram cinzas, pretos, tartaruga, coisas para senhores de mais idade. As armações ainda não haviam se tornado acessórios de moda e eu, futuro “quatro-olhos” queria algo que me tornasse um ser de outro planeta, afinal, começava a olhar para as meninas, moças feitas, os brotos da época.
Como para minha mãe eu estava “doente da vista”, me foi dado o privilégio que nenhuma criança tinha o de escolher a armação para as lentes dos seus óculos. Era exatamente o que faltava para a “tragédia” se consumar.
Escolhi a armação, ouvindo alguns protestos e fomos ficar uns dias na casa das “Irmãs Porto Rocha”, primas, velhinhas solteironas, moradoras da Tijuca e famosas pelas balas de licor que faziam. Fartei-me!
Óculos prontos, despedidas feitas, voltamos para Cabo Frio, sempre sob o olhar compreensivo de Dona Vera, que amargava certa tristeza como se carregasse culpas pela minha “doença da vista”.
Ao chegar à porta da minha casa, cheia da parentada, ansioso para me tornar uma pequena celebridade escuto:
– Tonho voltou do Rio cego.
O cantor mais famoso do mundo, que fazia o maior sucesso no Brasil, era Ray Charles.
O modelo de armação que escolhi era exatamente igual ao dele!
Lopes da Guia