Nelson Rodrigues – 1912/1980.
Era bonitinha, embora enjoativa. Asdrúbal a viu, pela primeira vez, numa festa, em casa de família. Perguntou ao Penaforte:
– Conheces aquela cara?
– Qual delas?
– A de verde. Conheces?
Penaforte, que se dava com todo mundo, identificou-a:
– Conheço. Chama-se Odete. Boa pequena, mas tem um defeito.
– Qual? E o outro:
– Gruda como carrapicho. Não larga mais o sujeito. Abre o olho.
Embora advertido, Asdrúbal deixou-se iludir pela aparência, realmente simpática, da garota. Era jeitosa de corpo e de rosto. Ao primeiro ensejo, tirou-a para dançar. Pronto. Até o fim da festa, não se separaram mais. E quando Asdrúbal se despediu, às duas horas da manhã, tinha o endereço, o telefone da menina e um encontro marcado para a tarde. Penaforte, que saiu com o rapaz, bocejou:
– Que tal? Asdrúbal resumiu:
– Mais ou menos.
Amor
A verdade é que ele gostara dos modos, ideias e sentimentos da pequena.
Adiante, baixa a voz para o amigo, no desabafo sórdido:
– É o que eu chamo um rabinho premiado!
Ao cair da tarde, tiveram um primeiro encontro. No dia seguinte, foram a um cinema, ver uma fita de mocinho. Uma semana depois, Asdrúbal procura Penaforte no emprego. Senta-se, puxa um cigarro e faz a síntese:
– Estou cheio! Penaforte não entende:
– Cheio de quê?
Acende o cigarro e começa a confidência:
– Da Odete. É um chute, compreendeu? Um autêntico chute! Já não aguento mais!
Penaforte acha graça:
– Não te disse? Batata!
Asdrúbal ergue-se. Anda de um lado para outro, numa amargura medonha, ao mesmo tempo que descreve a sua tragédia:
– O pior, o patético é que é uma flor de pequena, o anjo dos anjos, mas chata, coitada! Faz tudo o que eu quero, nunca diz não, é capaz de se atirar debaixo de um bonde por minha causa. Eu quero acabar com o negócio, mas não tenho um pretexto, não encontro um motivo. Dá um palpite. Devo fazer o quê?
O outro coça a cabeça, incerto:
– Sei lá, rapaz! Talvez o golpe seja inventar um troço, pregar uma mentira bem cabeluda.
– Como? Como? O amigo explica:
– Uma mentira que torne impossível o romance. Odete é uma menina séria, direita e outros bichos. Você diz que é, por exemplo, casado. Uma pequena como Odete não topa homem casado, evidentemente. Pronto! E o namoro acaba!
Asdrúbal, que se sentara, ergue-se, de novo. Esfrega as mãos:
– Boa ideia! Vou aplicar essa chave!
A grande pequena
Quando saiu, para se encontrar com a garota, ia certo de que a sugestão do Penaforte era genialíssima. Não lhe ocorreu pensar no choque, na desilusão brutal de Odete. Queria ver-se livre de um namoro que, passado o encanto das primeiras 48 horas, o enchia de um tédio, de um aborrecimento, de um desinteresse mortal. Mas quando a viu, mais terna do que nunca, mais abandonada, indefesa, teve um breve escrúpulo. Acabou, porém, dominando a própria consciência. Suspira:
– Sabe que esse vai ser o nosso último encontro? Assombra-se:
– Por quê?
E ele, vermelho da mentira cruel:
– Pelo seguinte: eu sou casado, percebeu? Casado e… — continua, gaguejando: – Seria uma indignidade da minha parte continuar iludindo você… Você, naturalmente, não há de querer namorar um homem casado… Não é mesmo?…
Silêncio. Asdrúbal arregala os olhos, espiando a reação. Súbito, Odete vira-se para ele; apanha entre as suas as mãos do rapaz. Num desvario, diz tudo:
– Eu quero você e não o casamento. Meu problema é amor, é amor!
Asdrúbal não diz nada, apavorado. Ela continua, com a cabeça recostada no ombro do namorado, chorando baixinho:
– Se você puder casar comigo, muito bem. Se não puder, paciência. Preciso de você, do seu carinho!
Num desconforto monstruoso, ele pigarreia:
– E os outros? Que dirão teus parentes, teus conhecidos, teus vizinhos?
Odete, no seu heroísmo de apaixonada, parece desafiar o mundo: “Não me interessam os outros. Interessa você, só você e mais ninguém!” Treme, ao dizer isso, como se uma súbita maleita a acometesse. E, de repente, une-se a ele, num arrebatamento que o intimida e consterna:
– Quero de ti apenas o seguinte: que tu digas, agora, neste momento, que gostas de mim. Não precisa ser muito. Um pouquinho que seja. Fala! Gostas um tiquinho de mim? Gostas?
O pobre-diabo capitula e concede:
– Um tiquinho, gosto.
Foi o bastante. Ela se crispa, num desses frêmitos que eletrizam uma mulher:
– Obrigada, meu anjo! — chora de felicidade: — Pra mim, esse tiquinho é muito, é tudo, ouviste?
O torturado
Deixou-a na porta de casa e partiu, fora de si. Caminhando, dentro da noite, falava sozinho: “Essa é a maior! A maior!” Às dez horas da noite, vai bater na porta do Penaforte. Por acaso, o amigo, gripado, recolhera-se mais cedo. Asdrúbal esbraveja:
– O tiro saiu-me pela culatra! Estou mais cedo amarrado. — Asdrúbal esbraveja.
Metido num pijama de não sei quantas cores, às voltas com uma coriza inexaurível, Penaforte permitiu-se um humor sinistro:
– Estás frito! E só tem um jeito: Emigra, rapaz, para a China, a Conchichina, o diabo que te carregue!
O outro, porém, estava num desespero sincero e profundíssimo:
– Vou te dizer o seguinte: a convivência com certas mulheres produz o câncer! Não é blague, não. É batata! E se eu continuar com essa pequena, vendo essa pequena, conversando com essa pequena, vou acabar com câncer ou, no mínimo, com úlcera! Escreve!…
O anjo
A princípio, Penaforte não levou a sério a angústia do amigo. Calculou que Asdrúbal exagerasse para fazer graça. Uns 15 dias depois, porém, encontra-o na avenida numa depressão pavorosa. Penaforte o interpela: “Como é? Acabaste o namoro?” A resposta foi um fundo gemido: “Pois sim!” Sentaram-se os dois, num bar, e Asdrúbal desfiou as suas provações: “Sou um vencido! Um miserando!” Penaforte, curioso e impressionado, indagou:
“E a pequena?” O outro ri, sordidamente:
– A Odete continua cada vez mais cada vez. Não tem um defeito, uma falha, nada. É a única pequena perfeita, cem por cento, batata. E já me convenci do seguinte: não conseguirei, nunca, chutá-la, nunca!
Penaforte quis chamá-lo à ordem:
– Espera lá! Também não é assim! Ninguém é obrigado a namorar, ninguém, carambolas! Desaparece, some!
Soluçou:
– Não posso! Ela iria atrás! Ela me perseguiria até os confins do quinto inferno!
Solução
E, de fato, Asdrúbal não fazia nada que ela não soubesse ou não controlasse. Durante o dia, Odete submetia-o a um implacável cerco telefônico. Chegara ao cúmulo de telefonar, certa vez, para sua casa, às quatro horas da manhã. E se ele a tratava mal, quase a pontapés, ela se fazia mais doce, meiga e humilde do que nunca: “Não precisa que me ames, basta que eu te ame.” Esse amor incondicional, esse fanatismo de mulher produzia, nele, um colapso de vontade. Diante dela sentia-se um indefeso, um derrotado. Não podia vê-la sem que seu estômago se contraísse. E negava qualquer carícia à pequena. Mas Odete, cada vez mais enamorada e submissa, sussurrava: “Não faz mal, não faz mal.” Até que ele caiu doente, muito doente. Vendo, em torno de si, caras assustadas, lágrimas, desconfiou. Tanto insistiu e tanto atormentou o médico que este acabou dizendo a palavra e a doença: “Câncer.” Então, Asdrúbal crispa-se no fundo da cama, numa euforia hedionda:
– Oh! Graças, graças!
Via a morte como uma liberdade. Morrer era ficar sozinho, livre de Odete, livre de seus carinhos, livre. Enganava-se, porém. Na véspera de sua morte, tinha um restinho de lucidez. E, então, Odete debruça-se sobre ele, para dizer: “Estás vendo esse frasquinho? É veneno. Morrerei contigo.” Devorado pela febre, Asdrúbal já não raciocinava direito. Imagina uma dupla morte, dele e dela, um caixão e um túmulo também duplos, onde apodreceriam juntos, assim unidos na vida como na morte. Morreu com esse pavor.