Categorias
Crônica / Conto

A LIÇÃO DE FLORÊNCIO

Luciana G. Rugani (*)

Amanheceu. O céu, esplendidamente azul, convidava a mais um dia de voos e peripécias.
Florêncio, uma gaivota-macho muito elegante, alinhou as últimas penas e resolveu sair para mais um dia de treino. Sempre muito falante, contava aos companheiros seus planos para aquele domingo. Treinaria seus voos, como sempre fazia ao iniciar o dia, e depois iria para a praia, apresentar seus dotes artísticos de voo para os humanos e aproveitar para comer batatas fritas e outras guloseimas humanas.
Gardênio, seu irmão, era uma gaivota bem menos afoita. Fazia seu treino diário e depois passava no Canto do Forte para comer um peixe ou outro, atirado pelos pescadores, e outros pequenos animais marinhos e restos de pesca. Apreciava leitura de textos, principalmente filosóficos e de biologia, por isso tinha a real noção do perigo que Florêncio trazia para a sobrevivência da espécie ao alimentar-se de guloseimas humanas. Conversava com Florêncio e alertava-o sobre o assunto. Florêncio compreendia, porém, quando próximo aos humanos, sentia-se totalmente à vontade e esquecia completamente as recomendações de Florêncio. Gostava de interagir e de exibir seus rasantes, ficava horas ali e só voltava para casa ao anoitecer.
Gardênio e Florêncio, quando crianças, foram criados em uma ilha, longe dos humanos e com farta variedade e quantidade de alimentos marinhos. Por isso, cresceram fortes, saudáveis e simpáticos aos exercícios diários de voo.
E assim partiu Florêncio para mais um dia de aventuras. Nenhuma outra gaivota arriscava-se como ele em manobras perigosas de voo! Seus rasantes, com o corpo na lateral, faziam parecer que a ponta de sua asa riscava levemente a onda do mar, contudo era só uma impressão, tendo em vista a distância milimétrica em que passava pela onda. Cruzava o mar do Canto do Forte ao Foguete fazendo piruetas no ar. Descia até a areia e aproximava-se, garboso, dos humanos, como se quisesse conversar. Às vezes, lembrava do alerta de Florêncio para que não confiasse tanto nos humanos a ponto de aproximar-se a uma distância comprometedora para sua segurança. Desse alerta ele não se esquecia, porém, quando próximo de batatas fritas, esquecia-se completamente das palavras do irmão. Ao anoitecer, voltou para casa depois de mais um dia regado a batatas fritas e comidas temperadas.
E assim passaram alguns anos. Florêncio casou-se com Matrícia, uma gaivota linda e, assim como ele, vaidosa, sociável e afeita à convivência com os humanos. Viviam felizes e tiveram filhotes. Entretanto, seus filhinhos eram franzinos, sem energia, demoraram a aprender a voar e não conseguiam manter-se por muito tempo nos ares. Em poucos anos, pareciam bem mais velhos do que de fato eram. Em razão de seus pais não terem se alimentado adequadamente, durante a fase de reprodução, os filhinhos nasceram pobres em nutrientes. As batatas fritas e comidas condimentadas não possuem os nutrientes necessários para uma boa formação, resultando em uma prole fraca e com pouca resistência a infecções.
Florêncio e Matrícia faziam de tudo pelos filhinhos. Por estarem mais velhos, já não voavam como antes e a interação com humanos havia diminuído, pois os filhos tomavam-lhe muito tempo, além de não terem mais a mesma energia de antes.
Infelizmente, dois de seus três filhinhos alçaram o “voo maior”, partiram para além-horizonte, o céu das gaivotas. A Florêncio e Matrícia, restou apenas o filhotinho do meio, cujo organismo era incapaz de assimilar a totalidade necessária dos nutrientes. Já não voava, e por isso não conseguia mais buscar seus alimentos, dependendo totalmente de ser alimentado por seus pais.
Um belo dia, Florêncio, sentado na areia e apreciando o pôr-do-sol, pôs-se a refletir nas falas de Gardênio, lembrando do quanto o irmão o havia alertado para o risco que trazia à sobrevivência da espécie ao insistir em nutrir-se da alimentação dos humanos. Agora, após tantas lutas para a manutenção dos filhotes, ele entendia perfeitamente. Gardênio sempre dizia: “Florêncio, cuide para que seus desejos e seus sonhos não suplantem sua realidade. Sonhar é bom, planejar altos voos é maravilhoso, porém é essencial que seus pés se mantenham firmes quando em solo”. Florêncio, conhecedor do estilo filosófico do irmão, sabia que Gardênio queria dizer para ele nunca se esquecer de “sonhar, mas com os pés no chão”, ou seja, conhecendo e respeitando os limites naturais de sua realidade, principalmente sabendo distinguir entre o que poderia ou não ser mudado, entre limites que poderiam ou não ser ultrapassados. Mas antes, em sua juventude, acreditava que tudo podia e que até mesmo sua natureza poderia ser adaptada sem maiores consequências. “Quanto engano”, pensava. “Pena haver tomado consciência das palavras de Gardênio apenas agora… Vivi como desejei, sempre ignorando que a natureza um dia me cobraria pelas atitudes insanas. Vivi meus dias como se fossem os últimos, ignorando os limites de minha natureza, e hoje aqui estou, a pagar um preço… um preço alto demais”.

(*) Luciana G. Rugani
Pensadora e experimentadora da arte e da literatura

Compartilhe este Post com seus amigos:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *