Paulo Cotias (*)
Aos sessenta anos de idade ele jurara de pés juntos que foi visitado por um anjo. Tudo aconteceu numa noite de segunda feira, quando já ia recolher-se, sozinho desde quase sempre, ao seu leito para mais uma desafiadora noite de sono. E foi aí que o tal anjo mensageiro deu o ar da sua graça. Segundo a história tantas vezes repetida, foi um diálogo breve, que nem precisou de bocas ou mesmo de voz. Tudo resolvido com palavras do pensamento.
A mensagem, no entanto, era um chamamento. Depois de tanto tempo dedicado ao que para muitos seria uma vida desprezível, finalmente chegara a hora de redimir-se em uma última e sagrada missão. Deveria ir para as ruas, passar o dia perambulando por elas e, quando percebesse assobio angelical, deveria olhar com firme ternura para pessoa que lhe chegasse à intuição. E a obra estaria feita.
E assim ele fez, passando a acreditar piamente que o seu olhar para os outros teria o poder de tirar deles o seu mal mais profundo. Nem sempre foi compreendido em sua missão. Por tantas e tantas vezes foi enxotado, agredido, xingado e confundido com um dos muitos senhores que tragicamente terminavam sua existência como pedintes. De certo modo, ele se tornara um pedinte às avessas, por que oferecia primeiro seu olhar profundo e recebia das pessoas, sem que elas notassem, as raízes de tudo o que as fazia sofrer.
Durante um tempo achou que ia sucumbir. As dores dos outros eram por demais pesadas e roubavam não apenas o seu sono mas, aos poucos, pareciam testar os limites da sua sanidade. Contudo, estoicamente, ele continuou na sua missão silenciosa e contemplativa. Era um caminho de purgo das suas próprias mazelas carregar o pesado fardo das tristezas alheias.
Curiosamente, o número de relatos de quem tinha trocado olhares com ele e que notaram uma mudança repentina de vida começou a crescer. Diziam os afetados que era como se a alegria voltasse instantaneamente, acompanhada da esperança, da bondade e de outros sentimentos tão bons que nem nome ainda possuíam para defini-los. Isso sem falar nos que atribuem curas misteriosas após esse encontro.
Aos poucos, essas coincidências começaram a ser cruzadas e o boca a boca disparou a falar que o velho era milagreiro. O burburinho virou notícia, a notícia virou postagens e as postagens se tornaram trends virais. Na velocidade de um clique, todos queriam receber uma olhada do velho e se ver livre, como que por encanto ou fé, de tudo de ruim que afligisse o corpo e a alma.
De uma hora para outra, influencers de todas as idades orgânicas e mentais (não necessariamente proporcionais), passaram a caçar pelas ruas o milagreiro, muito parecido com o que faziam com relação a um tal de pokemon (esse eu não conheci para saber se era também operava maravilhas). Vagavam com suas lives, prontos para registrar em primeira mão a sua presença.
Canais de televisão, blogueiros, radialistas, enfim, o velho era, certamente, o homem mais procurado do país naquele momento. E começou também a surgir pessoas em todo o país que juravam de pés juntos que viram o velho em sua cidade, na pracinha próximo à sua rua, nadando em córregos e até mesmo quem relatou que o viu descer por uma luz muito forte emanada de um objeto voador não-identificado.
Mas, como tudo nessa vida tão moderna, essa história foi sendo aos poucos desacreditada ao ponto de a maldade humana tentar fazer crer que o anjo nada mais era do que uma garrafa de bebida. Ou a perversidade de dizer que o velho era uma mentira criada como experimento social de alguma marca de cosméticos. O fato é que ele realmente desaparecera. E, com ele, os rumores e o interesse do distinto público. Uma pena. Essa gente boba bem que podia compreender que o poder curativo de um olhar de ternura é um remédio raro, tão raro, que muito provavelmente só uma visita divina pode criar os seus distribuidores.
(*) Paulo Cotias é psicanalista e escritor. Visite o site www.psicotias.com e acompanhe os conteúdos do Canal Psicotias no YouTube, Facebook, Instagram e X (Twitter).