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Crônica / Conto

O GAROTO QUE BUSCAVA UM AMIGO

Luciana G. Rugani

Para o escritor ou para qualquer pessoa que preza meditar sobre os acontecimentos, um simples fato pode tornar-se um conto, ou uma crônica, ou até mesmo um poema.
Certa vez, estávamos em casa e um garoto, em torno de seus oito anos, tocou a campainha e perguntou se havia ali, em nossa casa, alguma criança para brincar. Identificou-se, disse que havia mudado há pouco tempo para a casa em frente e que estava em busca de crianças na vizinhança com as quais pudesse brincar, pois, no lugar de onde ele vinha, ele brincava com muitos amigos na rua, portanto estava sentindo falta disso. Informamos que não, ele agradeceu e disse que iria tocar no prédio ao lado para continuar sua busca.
Esse simples fato me provocou muitas reflexões. Aquele garoto tão espontâneo, sorridente, livre, talvez vindo de algum bairro simples ou de uma cidade do interior, estava vivendo agora em plena rua movimentada de uma cidade grande e buscando amigos como aqueles com os quais convivia no passado. Esse fato poderia dar ensejo a vários contos, cada um com um final diferente. Um deles poderia ser daquele garoto tendo que se adaptar à cidade grande, onde hoje é praticamente impossível ficar pelas ruas a brincar e onde os amigos são raros, pois o tempo urge e não sobra tempo para a convivência despretensiosa. E esse garoto poderia seguir com sua espontaneidade, reinventando-se e expressando sua essência convivente de outras maneiras, seja por meio da arte, do esporte ou das atividades escolares. Ou ainda, esse garoto poderia se entristecer, fechar-se para todos, sufocar sua essência e tornar-se um adulto bloqueado, limitado em seu próprio ser. Na primeira opção, o garoto escolheu seguir naturalmente, compreendendo e contornando o obstáculo surgido, readaptando-se. Já na segunda, ele simplesmente aceita que aquela realidade fria é imutável e que ele precisa deixar pra trás seu jeito de ser e moldar-se ao novo estilo e a novos hábitos solitários. Partindo de ambas as opções, fica aí a dica para quem quiser construir histórias.
Para nós, ficam muitas reflexões. Quantos adultos existem por aí (com certeza muitos de nós) que acabam se perdendo, desligando-se de quem realmente são, bloqueando a espontaneidade e alegria naturais e, consequentemente, destruindo o ser que eram e assumindo posturas que nada mais são que armaduras para enfrentar o cotidiano adulto, enquanto esquecem que, justamente aí, é que abraçam o adoecimento da alma e o esfriamento das emoções. Quantos olham para trás e percebem que aquele garoto, ou aquela garota, com sentimentos de amor, de alegria e de confiança na vida, acabou sendo esquecido pelo amargor adulto. Ao mesmo tempo, temos aquelas pessoas (geralmente tornam-se grandes e verdadeiros líderes) que não deixaram para trás o ser criança que eram e, assim, mantiveram aquela vontade viva para caminhar com sabedoria, sabendo que a vida, naturalmente, tem seus percalços, e que é muito mais inteligente e saudável caminhar sendo quem se é do que bloquear-se, limitar-se e assumir, em definitivo, padrões que não são seus. Caminham sabendo que na vida há falsidades, temores e todos os tipos de dores com as quais é necessário aprender a lidar, porém nada disso chega a destruir a essência de quem são, enfim, não se permitem transformar em frios sociopatas, pois vivem as dores sem delas se tornarem escravos.
E, por fim, refleti um pouco também sobre o quanto perdemos da capacidade de buscar amizades pelo simples compartilhar e apenas para cultivar. O mundo adulto é tão adoecido que o simples querer bem tornou-se algo ultrapassado e incompreensível. São tantos os interesses egoísticos, que tudo é extremamente calculado. Hoje há a crença de que dedicar tempo e energia para cultivar, para partilhar e para aprofundar o conhecimento do outro é desperdício de tais recursos. Vivemos, apesar de tantos meios de comunicação, um tempo de comunicações falhas, com interpretações rasas e com pouquíssima disposição ao diálogo esclarecedor.
Muitos artigos que escrevemos surgem da observação de pequenos fatos, assim como reflexões e transformações pessoais também podem surgir de pequenos acontecimentos. Esse garoto, com uma iniciativa de ir atrás de um amigo, algo que durou cerca de três minutos, nem imagina que, ao não encontrar o que procurava, acabou dando vida a este artigo. Pequenas atitudes também podem propor transformações, basta estarmos atentos para percebê-las.

Luciana G. Rugani
Academia de Letras e Artes de Cabo Frio – ALACAF e
Academia de Letras de São Pedro da Aldeia – ALSPA.

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