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O CANALHA

Quando soube que a noiva tinha viajado de lotação com o Dudu, sentada no mesmo banco, pôs as mãos na cabeça:

— Com o Dudu?

E ela:

— Com o Dudu, sim.

As duas mãos enfiadas nos bolsos, andando de um lado pa­ra outro, ele estaca, finalmente, diante da pequena:

— Olha, Cleonice, vou te pedir um favor de mãe pra fi­lho. Pode ser?

— Claro.

Puxa um cigarro:

— É o seguinte: de hoje em diante, ouviu?, de hoje em diante, tu vais negar o cumprimento ao Dudu.

Admirou-se:

— Por que, meu anjo?

Ele explicou:

— Porque o Dudu é um cínico, um crápula, um canalha abjeto. Um sujeito que não respeita nem poste e que é capaz até de dar em cima de uma cunhada. O simples cumprimento de Dudu basta para contaminar uma mulher. Percebeste?

— Percebi.

Ainda excitado, ele enxuga com o lenço o suor da testa:

— Pois é.

Passou. Mas a verdade é que Cleonice ficou impressionadíssima. Dava-se com o Dudu, sem intimidade, mas cordialmen­te. Dançara com ele umas duas ou três vezes. Mas como o Du­du fosse fisicamente simpático e educadíssimo, Cleonice guar­dara dos seus contatos acidentais uma boa impressão. Caiu das nuvens ao saber que ele era capaz de “dar em cima de uma cunhada”. Teria, porém, esquecido. Voltando à carga, sentado com a noiva num banco de jardim público, ele começa:

— Meu anjo, tu sabes que eu não tenho ciúmes. Não sabes?

— Sei.

Pigarreia:

— Só tenho ciúmes de uma pessoa: o Dudu. E nunca te es­queças: é um canalha, talvez o único canalha vivo do Brasil. To­do mundo tem defeitos e qualidades. Mas o Dudu só tem defeitos.

Inexperiente da vida e dos homens, ela fazia espanto:

— Mas isso é verdade? Batata?

Exagerou:

— Batatíssima! Quero ser mico de circo se estou mentin­do! — E repetia, num furor terrível e inofensivo: — Indigno de entrar numa casa de família!

OBSESSÃO

Então, sem querer, sem sentir, Lima foi fazendo do Dudu o grande e absorvente personagem de suas conversas. Argumen­tava:

— Você é muito boba, muito inocente, nunca teve outro namorado senão eu. Queres um exemplo? Sou teu noivo, vou casar contigo. Muito bem. O que é que houve entre nós dois? Uns beijinhos, só. É ou não é?

Impressionada, admitiu:

— Lógico!

Lima continua:

— Figuremos a seguinte hipótese: que, em vez de mim, fos­se teu namorado o Dudu. Tu pensas que ele ia te respeitar co­mo eu te respeito? Duvido! Duvido! Dudu não tem sentimento de família, de nada! É uma besta-fera, uma hiena, um chacal!

Crispando-se, Cleonice suspira: “Parece impossível que existam homens assim”. Lima prossegue: “Vou te dizer uma coi­sa mais: o Dudu olha para uma mulher como se a despisse men­talmente!”.

A FESTA

Dias depois, Cleonice está conversando com umas coleguinhas quando alguém fala do Dudu. Então, ela olha para os lados e baixa a voz: “Ouvi dizer que o Dudu deu em cima de uma cunhada!”. Uma das presentes, que conhecia o rapaz, a família do rapaz, protesta: “Mas o Dudu nem tem cunhada!”. Mais tar­de a espantadíssima Cleonice interpela o Lima. Ele não se dá por achado:

— Eu não disse que o Dudu deu em cima de uma cunha­da. Eu disse que “daria” caso tivesse. Você entendeu mal.

Mais alguns dias e os dois vão a uma festa, em casa de famí­lia. Entram e têm, imediatamente, o choque: Dudu estava lá! Jun­to de uma janela, com o seu bonito perfil, fumando de piteira, pálido e fatal, atraía todas as atenções. Lima aperta o braço da noiva. Diz, entredentes: “Vamos embora”. Ela, espantada, per­gunta: “Por quê?”. O noivo a arrasta:

— O Dudu está aí. E não convém, ouviu? Não convém! Imagina se ele tem o atrevimento de te tirar para dançar. Deus me livre!

O MEDO

Na volta da festa, Cleonice faz, pela primeira vez, um co­mentário irritado:

— Fala menos nesse Dudu! Sabe que eu só penso nele? Te digo mais: tenho medo!

Lima estaca: “Medo de que e por que, ora essa?”. Ela pare­ce confusa:

— Essas coisas impressionam uma mulher. — E repete o apelo: — Não fala mais nesse cara! É um favor que te peço!

Ele obstinou-se: “Falo, sim, como não? Você precisa olhar o Dudu como um verme!”. Cleonice suspirou:

— Você sabe o que faz!

ÓDIO

Corria o tempo. Todos os dias, o Lima aparecia com uma novidade: “Vi aquela besta com outra!”. E se havia uma coisa que doesse nele, como uma ofensa pessoal, era a escandalosa sorte do “canalha” com as outras mulheres. Nos seus desaba­fos com a noiva, Lima exagerava: “Cheio de pequenas! Tem na­moradas em todos os bairros!”. Um dia, explodiu:

— Vocês, mulheres, parece que gostam dos canalhas! Por exemplo: o meu caso. Sem falsa modéstia, sou um sujeito decente, respeitador e outros bichos. Pois bem. Não arranjava pe­quena nenhuma. Até hoje não compreendo como você gostou de mim, fez fé comigo e me preferiu ao Dudu. — Pausa e baixa a voz, na confissão envergonhada: — Porque o Dudu me tirou todas as outras namoradas, uma por uma.

Era essa, com efeito, a origem do seu ódio por Dudu, do despeito que o envenenava.

AS BODAS

Chega o dia do casamento. Poucos minutos antes da ceri­mônia civil, Lima, transfigurado, ainda diz ao ouvido da noiva: “O Dudu roubou todas as minhas pequenas, menos você!”. Pois bem. Casam-se no civil e, mais tarde, no religioso. Quase à meia-noite, estão os dois sozinhos, face a face, no apartamento que seria a nova residência. Ele, nervosíssimo, baixa a voz e pede: “Um beijo!”. Ela, porém, foge com o rosto: “Não!”. Lima não entende. Cleonice continua:

— Falas te tanto e tão mal do Dudu que eu me apaixonei por ele. Eu não trairei o homem que eu amo nem com o meu marido.

Lima compreendeu que a perdera. Sem uma palavra deixa o quarto nupcial. De pijama e chinelos veio para a porta da rua. Senta-se no meio-fio e põe-se a chorar.

Nelson Rodrigues – 1912/1980.

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