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A VOZ DAS SALINAS

Dia desses saímos a passear, eu e ele. Fomos dar no que antes fora uma Salina próspera da nossa Cabo Frio. Ela ainda está lá suspirando agonizante com seus esqueletos apodrecidos. Nós sentíamos a força daquele lugar. Cada parte do que restou nos conduzia à uma percepção conhecida, porém inexplicável. O vento nordeste carregado das memórias dos cata-ventos revirando nossos avessos escondidos e profundos. Os moinhos destroçados nos lembrando do tempo em que a brisa sussurrava a imponência de sua potência majestosa. Alguns pequenos montes de sal cristalizados na solidão da estrada. O maquinário artesanal se extinguindo. Os nossos pensamentos revisitando a familiaridade daquele lugar desconhecido. Cenas com roteiro inacabado e vívido atropelando nossas mentes assustadas, invadindo nossos registros mais profundos.

Ouvi as vozes dos trabalhadores da estiva, dos puxadores de sal, desejei aproximar-me da labuta nutridora dos seus sonhos. Quis tocar seus corpos cobertos de pele ressecada em que o sol queimara seus restritos e singelos desejos ocultos. Para onde voltariam nas noites enluaradas? Haveria amor os esperando para afagar e fazer valer a crueza da lida? Algum deles estaria atento à sutil poesia que perpassava os dias rotineiros? Cada pôr do sol de uma tarde perdida no passado retratado num quadro pintado, numa fotografia em preto e branco envelhecida, já me valeria a existência de uma vida toda, já me valeria a vida por um fugaz instante.

Avistamos uma igreja compondo o cenário espectral onde havia um silêncio ensurdecedor nas badaladas dos sinos que emudeceram. Preces de melancolia e gratidão entoadas ali. Em seguida, nos deparamos com o prédio que compunha a base da atividade salineira, ainda com sua estrutura aparente conservada, num espaço antes dinâmico e produtivo. Tudo era abandono e descaso.

Nossos mortos atemorizando nosso passeio com suas aparições por todo lado. Ouvi novamente o vento forte a me contar segredos, ouvi as conversas paralelas sobre as superficialidades, ouvi o ranger das catracas da fábrica em movimento. Tudo o que era ainda sendo… O vento das Salinas falando alto, sacodindo as folhas dos galhos das árvores, suscitando as dores das almas, aquelas dores choradas na escuridão de um céu sem estrelas. O tamarineiro, farto de dias, a contemplar nosso percurso incerto por entre poças de salmoura que guardam lembranças esquecidas.

 Ao chegarmos próximos à lagoa, as casuarinas nos abraçaram com suas sombras delicadas. Observamos a vasta amplidão daquele território e nos comovemos em cumplicidade. A transparência daquelas águas claras suscitando o passado que transborda e nos revela. Havia uma razão para estarmos ali. Em todo passeio, nos percebemos em reverência a um tempo anacrônico que está para além do que possamos compreender, um senso de pertencimento que nos escapa o entendimento. O chão daquele lugar havia nos reconciliado com  as nossas origens, nos aproximado de nossas raízes mais genuínas, integrado partes perdidas de nós.

Caminhamos por uma cidade abandonada, nos deparamos com um museu natural e com os vestígios dos passos daqueles que aqui habitaram, com as marcas indeléveis que o tempo imprime a toda existência. Por entre ventos e moinhos, por entre águas represadas em lagos de sal, por entre sonhos e injustiças, foram aquele povo e aquela gente que nos passaram o legado que legitima a nossa identidade e nos torna parte do povoado desta terra e desta história que entrelaça nossos tantos Brasis.

 Ao nos despedirmos daquele espaço inabitado, desde então, nos sentimos mais conscientes de nós mesmos, sabedores de que a voz das Salinas continua ecoando toda vez que os ventos fortes chacoalham as memórias ancestrais.

Junia Rocha foi contemplada no prêmio Teixeira e Sousa de Literatura 2023 no gênero Crônica.

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