Silvana Lima
A retórica poética contida no
texto de Drummond nunca nos falou tão de perto. E agora, José? Finda a campanha, prefeito eleito,a tão
sofrida cidade de Cabo Frio, açoitada pelos desmandos políticos de décadas,
enfim respira aliviada suspirando sonhos de menina-moça. – E agora? – ela se
pergunta. – E agora? – todos e todas nos perguntamos.
Fazedora cultural desta
cidade há cerca de 40 anos, acordei no dia 16 de novembro com a janela aberta
pro sol e pra esperança. Seria, por acaso, proibido esperançar? – pensei
comigo. Há muito que fazer, há muito que perceber, há muito que alcançar,
apreender, atingir. E, sobretudo, há muito que ouvir. Impedidos de quaisquer
participações em nível de discurso, troca e práxis, os movimentos culturais
desta cidade ao mesmo tempo que cresceram em qualidade, quantidade e
diversidade, também amarguraram um ostracismo gigantesco e tentaram de todas as
formas cavar suas participações nas gestões que se instalam na cidade. O
silencio dos que assumiram a pasta da cultura avançou durante décadas e se fez
uma prática tão perniciosa à cidade que, em 2018, quando a historiadora
MeriDamaceno e sua equipe assumiram a pasta por oito meses e abriram conversas
com os artistas através de suas câmaras setoriais, os movimentos culturais
vislumbraram uma possiblidade de participação e construíram juntos indicativos para
a área. Mas durou pouco. Oito meses. E havia tanta ânsia e tanta carência para
o diálogo que em oito meses apenas a gestão construiu conversa com aproximadamente
mil artistas em cerca de cemreuniões públicas com os 11 segmentos da sociedade
civil Conversa franca e honesta. Com respeito e deferência.
Bom e importante salvaguardar
a gestão de José Facury que inaugurou entre 2013 e 2015 a política de editais
(um dos pilares que citarei mais adiante), iniciada na gestão de José Correia e
executada por Facury, ganho importantíssimo
que trocou a política de “balcão” pela política da transparência, causando uma
efervescência cultural na cidade que ficou cerca de dois anos recebendo
atividades artísticas oriundas do PROEDI.
Falo sobre participação
popular porque falei antes em esperançar, rico neologismo criado por Paulo
Freire para designarautonomia e liberdade. Falo sobre escuta porque defendo
para a gestão cultural desta cidade quatro pilares com os quais entendo que se
construa uma gestão séria, compromissada, transparente e democrática. E um dos
pilares entendo que seja exatamente a participação. Um dos grandes estímulos à
ampliação da participação popular foi a instituição da Lei de Acesso à Informação (LAI), que exige dos
órgãos e atores do poder público maior publicidade dos seus atos. Desde que
a transparência pública ganhou força com esta lei, a
relação entre a sociedade e seus representantes deveria se tornar mais próxima.Porém,
apesar de nos vermos mais engajados e com necessidade de pensar e elaborar a
cidade artística e culturalmente junto com a gestão, reivindicandotransparência
nas ações e contribuindo de forma eficaz na construção das políticas públicas
locais através da relação entre os diversos atores sociais e o município,
infelizmente os gestores se fecham em seus gabinetes impedindo a participação. Impera
quase sempre o silêncio, nem mesmo havendo diálogo com os conselhos,
instituídos democraticamente para análises, consultas e deliberações de ações
públicas culturais.
Outro pilar não menos
importante que a participação popular é o resgate da memória e das tradiçõesdesta
cidade tão rica e tão cheia de histórias que é Cabo Frio. Não apenas as
histórias vividas pelas famílias tradicionais da elite cabofriense, mas também
e igualmente, o resgate das tradições dos cidadãos e cidadãs que viviam fora do
centro a exemplo do belíssimo trabalho
realizado por Amena Mayal, Marcio Wernec, Anita e ZarinhoMureb, Carlota Lopes,
Liana Turrini entre outros e outras, enfim, toda uma geração que ainda hoje é
referência pelo legado deixado tanto com a cultura popular quanto com a cultura
do ecossistema, refletindo a emergência de uma nova relação identitáriados
munícipes e das munícipes com sua tradição e memória.
A memória é o principal
mecanismo para garantir a construção da história de uma sociedade, importante
portanto que ela seja estudada, revisitada, catalogada, preservada e esteja no
centro das discussões das gestões. É através da memória que o homem constrói a
sua identidade e estabelece os parâmetros que irão conduzir os caminhos
futuros.Defender como pilar para a cultura um trabalho sério e participativo de
pesquisa, catalogação e preservação da memória, única garantia de que os
acontecimentos passados sejam objetos de informação para a sociedade
futura de forma coerente e verdadeira, parece óbvio. Mas não é, exatamente
porque não se faz em nível de gestão pública e sim apenas por bravos artistas
que resistem.
Outros dois pilares que
sustentariam uma gestão pública comprometida com o acesso e a transparência de suas
ações seria, no meu entendimento, a descentralização não só de ações culturais,
mas também e principalmente, de espaços fora do centro da cidade para que o
cidadão comum participe da formulação de políticas, projetos culturais e gestão
de equipamentospara seu bairro e sua comunidade. Existe Cabo Frio além da
ponte, uma Cabo Frio que cresceu e está construindo uma identidade própria e
que precisa se ver no processo de construção. Precisa de representatividade.
Precisamos de mulheres na gestão sim. Mas precisamos antes de mulheres pretas e
mulheres periféricas para não cairmos no engessamento tão recorrente do olhar
branco do centro da cidade. O debate teórico e a práxis precisam ser democratizados
e chegar na periferia da cidade onde tantas e diversas manifestações artísticas
se desenvolvem, onde é maior que o grande centro e não recebe o tratamento devido.
Com essa política, podem ser revitalizadas diversas atividades locais; podem
ser valorizadas as expressões culturais das periferias das cidades; também pode
ser promovido o acesso de toda a população à informação e à criação cultural,
além de estimular a produção local.
Por fim, o quarto pilar está
intrinsecamente ligado à participação e descentralização que é a política de
editais. Os editais e as chamadas públicas são os meios mais transparentes para
evitar o clientelismo que envolve, na maioria das vezes, concessões e
privilégios e é uma prática perniciosa numa gestão onde a maioria se prejudica
e a minoria é beneficiada.
Mas há as urgências.
E agora, José?
Urge que se recupere os
equipamentos culturais desta cidade, começando talvez pelo mais doente: o
Teatro Municipal Inah de Azevedo Mureb, que anda às minguas; urge que se reveja e se cumpra minimamente o
Plano Municipal da Cultura (que é decenal);urge que se destine, a pedido do
PMC, 2% para a cultura; urge que se
enxergue as manifestações artísticas de grupos, de coletivos,de quilombolas, de
pretos e pretas, de periferias, de lgbtqi+,de mulheres, de circo, de artistas
de rua, de pessoas com necessidades especiais. Urge que se faça mapeamento de
patrimônio material e imaterial da cidade, que se catalogue fotografias e
filmes da região;Urge que se revitalize os cursos de formação artística a
exemplo do que se oferecia no Teatro Municipal; urge que se abra diálogo sobre
preservação e memória, sobre identidade, sobre representatividade, sobre
democracia. Urge, urge, urge.
Diante de tantas urgências,
fruto de gestões que foram passando e negando as questões através de seus silêncios
e omissões, volto ao início deste texto onde defendo a participação popular
como ponto x de uma gestão que deseja realizar junto com a sociedade as medidas
necessárias para que as coisas, no seu tempo, possam caminhar. Uma gestão que,
junto com artistas, conselhos e sociedade em geral, defina prioridades e
avenceem direção ao que a sociedade deseja.
Seria uma medida sábia para
os que chegam, creio eu.
Voltando a Paulo Freire, “…
esperançar é se levantar, ir atrás, construir, levar adiante, juntar-se com
outros pra fazer de outro modo.
E agora, José?
Bora esperançar?
Silvana Lima
Professora, atriz do grupo creche na coxia.
escritora, encenadora, diretora do Teatro Quintal