— Não existem mais vizinhos!…
Todo ano, no dia 27 de setembro, dia de São Cosme e Damião, à noite, antes de deitar, de cobrir a travessa de doces com um pano branco limpinho, de levar a caneca com o chá de erva-cidreira à boca, minha mãe repetia:
— Não existem mais vizinhos!…
Tudo por causa da dona Izildinha (nossa eterna vizinha!). Mulata, gorda, prestativa como ninguém, santa enfermeira do Hospital Getúlio Vargas, dona Izildinha jamais esquecia o nosso doce. Mesmo depois que passamos a viver a três bairros de distância, subindo os trilhos da Leopoldina via Central do Brasil — e meu irmão e eu já não éramos mais crianças —, dia 27, impreterivelmente, ela chegava com os dois saquinhos estampando a imagem dos gêmeos.
— Comadre Cecília!… Comadre Cecília!…
Não sei se por medo de levar choque ou por algum trauma qualquer, nunca usava a campainha. Chamava pela minha mãe à porta, e sua figura, no olho mágico, turva e adelgaçada, logo inflava, sólida de corpo e de coração. Entrava distribuindo sorrisos e os generosos saquinhos, cheios até a boca. Havia de tudo: maria-mole, mariola, doce de abóbora, pé-de-moleque, suspiro, cocada…
Entre beijos e cumprimentos, as duas diziam sempre a mesma coisa:
— Vim trazer o docinho das crianças…
— Ah, Izildinha!… Se preocupar com esses cavalões!…
Eu olhava as duas frente a frente, a mesa no meio, acabava lembrando da conversa de horas que ambas alimentavam no antigo bairro. Conversavam todo dia no fundo do quintal, onde o muro era mais baixo. Dona Izildinha se arriscando num banquinho de madeira, minha mãe numa pedra mal assentada. Jamais vou esquecer o dia em que nós mudamos. Acostumadas ao papo naquele canto, despediram-se ali mesmo: dona Izildinha, o braço gordo, num entrelaço desajeitado, mas fraternal; minha mãe, pragmática, mas terna, fazendo força para não chorar. Da cintura para cima a emoção da mais pura amizade, da cintura para baixo o muro branco de concreto. Ficaram algum tempo assim, esgotando a esperança de que algum imprevisto mudasse a irremediável despedida, depois, desabraçaram-se.
Os bons vizinhos são como irmãos, e, às vezes — por que não? —, gêmeos. Minha mãe e dona Izildinha pareciam gêmeas de coração: a mesma generosidade nos gestos, a mesma sinceridade no olhar, a gargalhada com o mesmo bocado de felicidade. Eram mais que irmãs de sangue, eram irmãs de alma. Tão irmãs e tão gêmeas quanto Cosme e Damião se eles fossem mulheres!
Enquanto as duas colocavam a conversa em dia, meu irmão e eu promovíamos um disputado intercâmbio da glicose farta. O doce de abóboraera o primeiro a ser oferecido. Meu doce-objeto de desejo era o peitinho de moça. Acabava fechando negócio por um tablete de torrone. Insistente, meu irmão propunha várias trocas que eu considerava desvantajosas. Eu me negava a todas. Ele, então, ameaçava trocar à força. Brigávamos feio.
Meu pai, que até aqui só tinha vindo à cozinha para cumprimentar a dona Izildinha, apartava a briga e fazia sermão. O velho pensava completamente diferente de minha mãe. Vizinho bom era o surdo e mudo. Nada de intimidades! Achava que vizinhança era sinônimo de fofocas. Até onde sei do velho, os bons vizinhos seriam aqueles que deixassem os saquinhos de doces no escaninho e pronto. Por ele, se mandassem os doces pelo correio estaria perfeito. Se naquele tempo o computador estivesse em voga, ele defenderia a distribuição de doces de Cosme e Damião, via internet, num saquinho virtual. E ainda diria, no exercício de sua racionalidade
preponderante:
— (…) Mas a solução para o país é a distribuição de renda…
As amigas largavam da conversa para ajudar meu pai. Minha mãe dizia que já estávamos bem grandinhos e a dona Izildinha invocava os médicos que morreram mártires, em 303, na Egeia:
— Cosme e Damião foram decapitados para isso?…
Bárbaro, à semelhança do imperador Diocleciano, meu irmão, na primeira oportunidade me dava uns petelecos, colorindo minha orelha de vermelho, demonstrando que a raiva não passara nem depois de ter esvaziado o saquinho de doces. Dona Izildinha aproveitava para lembrar que estava na horade ir embora. Minha mãe castigava meu mano ordenando-lhe que levasse a visita até o ponto do ônibus. Ele dizia: “Eu, tudo eu, por que eu?”. Minha mãe não falava nada, apenas fazia uma cara horrível. As duas amigas se despediam. Abraçavam-se calorosamente, sem muro e sem mesa. “Até logo, comadre!”
Minha mãe fechava a porta e…
— Não existem mais vizinhos!…
(Ricardo do Carmo)